A RIQUEZA E A POBREZA (1)

Aqueles que cedem à tentação de manifestarem-se sobre o combate à pobreza cultural, moral e financeira de um indivíduo ou uma coletividade e aqueles que apoiam o discurso utópico-eleitoreiro da possibilidade de combater à fome e à miséria no mundo e da marginalização dos ricos colocando estes como a causa maior da fome e da miséria farão bem em se lembrar dos aspectos indicados neste texto.

A inteligência do universo tem caráter comunitário. Assim, se há seres superiores e inferiores, estes existem em razão da necessária harmonização maior. A criação executou a subordinação, a coordenação e a distribuição de todas as coisas conforme o respectivo valor para o todo e os organizou para viverem em concórdia entre si. Embora os seres racionais vivam claramente uns em função de outros, também  pode ser percebido em tudo que as coisas inferiores foram constituídas em função das superiores. Destrua-se a riqueza e a pobreza será ainda mais atingida. O que caracteriza o movimento da razão e da inteligência é estabelecer com precisão um limite para si mesmo sem ser subjugado pelas agitações dos sentidos nem pelos impulsos do instinto, que têm caráter de animal tido por irracional ou de racionalidade inferior. Faz parte da constituição de um ser racional não ser precipitado nem se deixar enganar facilmente.

De fato, mesmo nascidos maximamente em função de uma reciprocidade, a faculdade condutora de cada um de nós possui sua própria soberania. Se assim não fosse, o vicio e a maldade seriam igualmente de outros. Isso não foi o que a natureza fez. A essência da causa e efeito é pessoal e intransferível. Ela buscou não deixar no poder de outra a desventura de si mesmo. O livre-arbítrio de qualquer um é absolutamente indiferente a qualquer outro. 

Há um entrelaçamento mútuo de todas as coisas no mundo. Tudo pertence a um conjunto maior denominado mundo. Segundo o prisma da analogia, são como os membros de um corpo onde cada um de sua forma contribui para uma ação em conjunto, e não se pode exigir dos pés o trabalho das mãos, cada um contribui de acordo com a sua própria natureza. Todos são colaboradores para uma realização única de acordo com a natureza do mundo, poucos estão cientes disso ao passo que a quase totalidade não percebe. As pessoas colaboram de formas diferentes. Heráclito de Éfeso (470 a.c) disse que até aqueles que dormem auxiliam no equilíbrio do mundo. O mundo necessita de todos e de seus opostos. Se alguém é negligenciado pelos deuses (pelo destino) também isso tem sua razão. O vício por mais condenável que seja também é útil sob diferentes aspectos. Observando-se detalhadamente conclui-se que vícios individuais (ex. consumismo) produzem benefícios coletivos (ex. gera produção de bens e serviços). Tudo o que acontece a cada um, de bom ou de ruim, para o bem ou mal, é vantajoso para o mundo. A questão maior é saber em qual dessas categorias de colaboradores pensas te posicionar! Viver com a verdade e a justiça ou seus exatos opostos? 



“O mais importante é invisível aos olhos”  [Antoine de Saint-Exupéry – 1900-1944)

As expectativas subjetivas do indivíduo representam um papel difícil de avaliar; elas se mostram dependentes de fatores muito pessoais, de experiência particular, de atitude individual mais ou menos esperançosa em relação à vida que, no conjunto, resultam em seu querer, em seus valores, além de seu simples poder.

É certo e notório que para a maioria tornou-se rotina a preferência, a limitação, a um único ou poucos campos do saber. É notável também o fato de os seres humanos considerarem opressivos os sacrifícios que lhes são exigidos pela cultura (o saber) mesmo sabendo que esta lhe possibilitaria uma vida melhor. A cultura, portanto, é algo que deve ser protegida contra os interesses da maioria. Ademais, as criações humanas são fáceis de destruir, e a ciência e a técnica que as construíram também podem ser empregadas na sua aniquilação. Fica-se assim com a certeza de que a cultura é algo imposto a uma maioria recalcitrante por uma minoria que a valoriza. Assim também é a relação da proporção entre ricos e pobres. 

Obviamente, é fácil supor que essas diferenças (rico e pobre) não estão ligadas apenas à natureza da própria cultura e da riqueza em si, mas que são muito condicionadas às imperfeições humanas. Enquanto a humanidade fez progressos contínuos no que diz respeito à dominação da natureza e pode esperar outros ainda maiores, não é possível constatar com segurança um progresso análogo na regulação dos assuntos dependentes da natureza humana em todas as épocas.

Em todas as épocas, toda cultura e todo sucesso individual foram construídos sobre coerção para forçar a renúncia aos instintos naturais do ser humano. A maioria, em todas as épocas, nunca esteve preparada para assumir o trabalho necessário sem muita coerção. Em todo ser humano há tendências destrutivas, antissociais, anticulturais, e que na maioria das pessoas elas são fortes o bastante para até impedir o melhor comportamento para Si e para a sociedade.

Esse fato psicológico possui uma significação decisiva para o juízo acerca da cultura e riqueza humanas. O pensamento de que o essencial é a dominação da natureza para a obtenção de bens vitais e que os perigos que a ameaçam poderiam ser eliminados por meio da adequada divisão desses bens entre os homens, e nisso de baseia o comunismo e o socialismo, não considera a variável do material psíquico humano. Assim como não se pode prescindir da coerção ao trabalho da cultura (o saber) tampouco se pode prescindir da dominação de uma minoria sobre a massa, pois as massas são indolentes e insensatas, não gostam ou não conseguem renunciar aos impulsos ruins e não podem ser persuadidos com argumentos da inevitabilidade dessa renúncia e seus indivíduos se fortalecem mutuamente compartilhando a mediocridade, na tolerância aos desregramentos que praticam – princípio da aprovação social ou efeito manada: onde a maioria vai eu vou ! o que a maioria fala, pensa e faz eu também sigo igual !

 SEM VIRTUDE NÃO HÁ PROSPERIDADE


A maioria dos eleitores é do tipo que percorre os caminhos deste mundo sem ponderar se é bom ou mau seu modo de vida e suas escolhas, é como um cego que caminha em um campo minado de bombas, exposto ao perigo, cujas chances de se prejudicar são maiores que as de ser salvo. Poucos se arrependem de suas más escolhas. Voltam sempre para a mesma trilha, a galope, quais cavalos na batalha. Agem pelo ímpeto de seus hábitos, sem se permitirem o tempo necessário para a sua avaliação, resultando daí andarem de mãos dadas com o mal sem sequer perceberem-no. Do mal não se consegue escapar sem uma boa dose de sabedoria e uma visão mais profunda da vida. Muitos veem o mal como se fosse o próprio bem.

Apenas através da coerção e da influência de indivíduos exemplares, que as massas reconhecem como seus líderes, é que elas podem – voluntariamente ou coercitivamente - ser movidas ao trabalho e às renúncias de que dependem a continuidade da prosperidade humana e sua cultura. O homem não é espontaneamente inclinado ao trabalho e, comumente, não aceita  argumentos contra as suas paixões.

Há quem acredite (e o cristianismo quer fazer acreditar) que o caráter ruim das massas humanas é apenas consequência de sociedades imperfeitas que tornaram seus indivíduos imperfeitos, rancorosos, vingativos e intratáveis. Igualmente, acreditam que se as pessoas forem educadas com carinho e orientadas desde a infância sobre os benefícios da 'cultura/saber' estarão ou tornar-se-ão preparadas para lhes oferecer os sacrifícios necessários ao trabalho para a sua conservação e até teriam satisfação na renúncia aos seus péssimos instintos. Elas, assim, poderiam prescindir da coerção e pouco se distinguiriam de seus líderes/ídolos que possuem os atributos que lhes faltam. Contudo, não se pode deixar de observar que em toda a história da humanidade não houve massas humanas com essa característica. Será que isso se deve apenas ao fato de nenhuma cultura ter encontrado ainda as instituições ideais para influenciar os homens, desde a infância, dessa maneira? No mínimo, pode-se duvidar se isso seria mesmo possível. Pode-se perguntar de onde devem provir esses líderes superiores, abnegados que deveriam atuar no papel de educadores das gerações futuras sem firmeza, apenas com carinho? Será que o Vaticano conseguiria? Por que o Vaticano não se esforçou para dar exemplo? Pode-se por em dúvida também se e em que medida esse outro ambiente cultural seria capaz de extinguir as características das massas que tanto dificultam a condução dos assuntos humanos. Essa experiência ainda não foi feita, não se pode ignorar ou medir a extensão do inevitável abismo entre as intenções e suas realizações. É certo que uma certa porcentagem da humanidade possui uma disposição patológica ou uma força excessiva de impulsos malignos que as obrigará a permanecerem associal em qualquer circunstância.

Ao reconhecermos que toda cultura próspera repousa sobre a coerção ao trabalho e a renúncia aos impulsos da natureza vil humana, e que por isso produz inevitavelmente uma oposição daqueles que são afetados por elas, tornou-se claro que os próprios bens, os meios para a sua obtenção e as disposições para a sua divisão não podem ser o essencial ou o único elemento do desenvolvimento humano individual e coletivo, e para a consequente paz social. Pois estes sempre foram e serão ameaçados pela rebelião e pela tendência destrutiva dos seus membros. Ao lado dos bens é necessário existir os meios de coerção e compensação pelos sacrifícios para a criação e manutenção do saber e da cultura. Tais meios podem ser descritos como o patrimônio psíquico do desenvolvimento humano e social.

Chamemos de frustração o fato de um impulso não poder ser satisfeito;  de proibição a instituição que a estipula e de privação o estado produzido pela proibição. Há privações que atingem a todos e que não atingem a todos, mas apenas grupos, classes ou mesmo indivíduos: privação relacionada à renda individual. Percebe-se com surpresa e receio que a maioria dos homens obedece às respectivas proibições culturais apenas quando pressionada pela coerção externa, ali onde esta pode se fazer valer e enquanto pode ser temida. Quanto às limitações que se aplicam a determinada parcela da sociedade, é de se esperar que essa parcela desfavorecida inveje as vantagens das que considera privilegiada e desenvolva uma hostilidade intensa contra a cultura cujos benefícios lhes cabe uma cota muito pequena. Esses oprimidos não se resignam em aceitar a situação que lhes oprime e se empenham em destruir a própria cultura opressora ou até de abolir seus pressupostos; são exemplos notórios: propostas comunistas, socialistas, a fim de destruir o capitalismo; a soteriologia do cristianismo que ofende diretamente o ponto central do judaísmo. 

Às vezes os oprimidos se identificam com outros que consideram ‘privilegiados’ e em dadas circunstâncias até os apoiam. Exemplo: Um plebeu romano miserável atormentado por dívidas e pelo serviço militar, mas que por também ser romano como seus opressores tinha a sua parcela de prazer e orgulho de saber que os romanos também dominavam e escravizam outros povos de outras nações, vendo seus ideais de escravizador nos seus senhores. Porém, essa identificação com os administradores dessa cultura que os domina e explora é apenas uma parte de um contexto maior, mas que não fossem por esses falsos remédios seria mais incompreensível como tantas culturas tenham se conservado por tanto tempo, apesar de tanta hostilidade recíproca. 

Como consequência do sentimento de culpa imputado pela Fé Cristã, pessoas “bondosas”, com o interesse de irem para o paraíso (ou medo de não irem), acreditam (ou agem como se acreditassem) que pessoas más podem ser transformadas em boas se as “bondosas” lhes derem alguma coisa, principalmente ajuda econômica (pode ser por intermédio da igreja) e uma dose de compreensão/tolerância às suas maldades.  Infelizmente, os que têm essa fé (ou interesse) em medidas de apaziguamento para evitar a guerra, frequentemente terão que se deparar com uma guerra mais violenta ainda como resultado de suas ingenuidades (Cal Thomas – adaptado) 

Em que reside o valor especial das ideias religiosas? Por que razão há tanto público para tantas igrejas evangélicas em periferias pobres? 

Já falei da hostilidade das massas à cultura pela pressão que esta exerce pelas renúncias aos impulsos da natureza humana que exige. Uma sociedade sem limites onde todos pudessem externar seus selvagens desejos só seria útil a um tirano que tivesse se apossado de todos os meios de poder e a ele interessaria pelo menos um dos mandamentos coercitivo para todo os outros humanos: “Não Matarás”. 

É uma impossibilidade suportar o estado da natureza humana livre de forças coercitivas. Precisamente em razão desses perigos com que a natureza (sentido amplo) ameaça os homens foi que motivou a sua “união” e a criação as regras coercitivas coletivas, tudo para possibilitar a convivência e a sobrevivência. 

A tarefa capital da cultura (sentido amplo, incluída a religião), sua verdadeira razão de existir, é a de nos defender sobretudo um dos outros. A vida é cheia de inimigos francos e um número muito maior de inimigos dissimulados, que são aqueles que não podem tolerar o sucesso alheio. A natureza, incluída nesta a humana, se subleva contra nós, imponente, cruel, implacável, colocando-nos permanentemente diante dos olhos a nossa fraqueza e o nosso desamparo, de que nunca conseguimos nos livrar completamente. 

Tal como para o indivíduo, a vida para a humanidade como todo sempre foi muito difícil de suportar. Uma cota de privações lhe é imposta pelas regras coercitivas sociais em razão dos humanos. A estas se acrescentou os danos causados pela indomada natureza que muitos humanos denominam de destino: erros genéticos, furacões, erupções vulcânicas, terremotos, etc..

O orgulho gravemente ameaçado do homem exige consolo; a crueldade e os pavores do mundo e da vida devem ser compensados. A natureza egoísta e maléfica do homem também o faz sentir-se confortado com a desgraça alheia. Assim, os templos religiosos servem para esse conforto compensatório no sentido de fazer com que cada sofredor se sinta aliviado com as desgraças e angústias de seus semelhantes. Lá o homem está cercado em toda parte por outros humanos iguais a ele os quais conhece de sua própria sociedade, então ele respira aliviado com o falso apoio psicológico da coletividade submetida a semelhantes desgraças; sente-se em casa em meio a coisas inquietantes e elabora psiquicamente a sua angústia e seus alívios sem sentido. É o mesmo interesse que faz com que humanos se juntem para suportar uma calamidade da natureza, refiro-me ao egoísmo da autopreservação. Essa substituição das forças da natureza pela psicologia proporciona um alívio imediato. 

Essa situação não é nova, ela tem um modelo infantil, pois todo ser humano já passou pelo sentimento de desamparo infantil diante de seus pais dos quais tinha razão para temer – sobretudo o pai – mas de quem também recebia proteção contra os perigos que então conhecia. Isto faz com que seja natural comparar ambas as situações. E tal como na vida onírica, o homem transforma as forças da natureza superior a ele em ‘deuses’ e lhes confere um caráter paterno protetor, seguindo o modelo infantil, haja vista que o desamparo dos homens permanece, e, com ele, os deuses que representam o anseio pelo pai protetor, e se não se adequar aos seus preceitos será também punido por ele. Os deuses conservam a sua tripla tarefa: afastar os pavores da natureza; de reconciliar os homens com a crueldade do destino, em especial na morte; e de recompensá-los pelos sofrimentos e privações que a vida em sociedade lhes impõe, ainda que tudo meramente imaginário e supersticiosamente. 

Os humanos dispuseram que os deuses são os senhores absolutos da natureza e que toda manifestação de bom ou de ruim é por conta e ordem deles. Ocasionalmente, eles se fazem lembrados também por meio de ‘milagres’, quando resolvem interferir no seu curso natural de modo favorável aos humanos. Quanto mais a ciência possibilitou a compreensão dos fenômenos da natureza, quanto mais os homens retiraram os deuses dela e o seu poder foi direcionado para o âmbito puramente moral (uma variável eterna) que se tornou o seu verdadeiro domínio. Isto explica o abandono do culto aos deuses da antiguidade cujas virtudes e maldades estavam muito ligadas a fenômenos naturais: deus do mar, da chuva, do trovão, etc. Ao longo dos séculos, as religiões foram substituindo seus dogmas superados por outros mais cuidadosamente ajustados para resistir à ciência e, para isso, migraram os poderes divinos para o campo moral, abstrato, com o apoio da ilusão da vida após a morte surgida no final do século XIX. A coação religiosa migrou para fora da realidade, para uma abstração vazia, com interesse prático somente para o homem supersticioso, medroso e egoísta que trata a ciência como  uma ilusão e a vida após a morte não!

A partir de então, torna-se, cada vez mais, tarefa divina compensar as falhas e os danos da coletividade humana, atendar para os sofrimentos que os homens se infligem mutuamente e vigiar o cumprimento dos preceitos coercitivos necessários aos quais os humanos obedecem tão mal. Esses preceitos foram elevados a origem divina, acima da pecadora humanidade e ainda estendidos ao destino da natureza e a todos os demais acontecimentos no mundo, no passado, presente e futuro (versão espírita do cristianismo). 

Criou-se assim um patrimônio de ideias nascido da necessidade de tornar suportável o desamparo humano que foi construído com o material de lembranças relativas ao desamparo da própria infância e da infância evolutiva do gênero humano, com o propósito de compensar psicologicamente todos os infortúnios da existência humana. Com foco nesse objetivo, vários argumentos falaciosos foram desenvolvidos, são exemplos: a vida nesse mundo não é nada, apenas serve para um outro fim mais elevado; tudo que acontece neste mundo é a realização dos propósitos de uma inteligência superior que, mesmo por caminhos e descaminhos difíceis de entender, está guiando tudo para o bem maior, para o mundo vindouro espiritual; a própria morte deixou de ser um retorno ao inanimado inorgânico para tornar-se o começo de uma nova espécie de existência situada no caminho do desenvolvimento rumo a algo superior onde há um Deus que domina todos os acontecimentos do Mundo, incomparavelmente poderosa e consequente. Assim, todo bem acabará por receber a sua recompensa, e todo mal a sua punição – e se isso não acontecer já nesta forma de vida, certamente acontecerá nas existências posteriores que começam após a morte. 

Por óbvio, o oculto do aparente desta falácia psicológica é a informação de que, desse modo, todos os pavores, sofrimentos e rigores da vida estão destinados à extinção; a vida após a morte, que continua a nossa vida terrena, traz toda a completude de que sentimos falta aqui na vida real, mas desde que o devoto siga na vida real a prescrição religiosa: que se considere um pecador e se sinta culpado por tudo que fizer e pensar para vantagem própria. Um dos pecados é desejar ser rico, fazer parte de uma minoria; afastar-se da maioria pobre é sinônimo de um mau egoísmo. 

O monoteísmo quer fazer crer que no único ser divino se condensaram todos os deuses das épocas passadas. E por que monoteísmo? O que há de oculto nesse interesse? O único deus possibilita melhor recobrar a efusão e a intensidade das relações infantis com o Pai poderoso e protetor. Contudo, quando se fez tanto para e pelo Pai, também se queria ser recompensado: ser, pelo menos, o único filho amado, o povo eleito. 

Todo esse encadeamento lógico resumido passou por uma longa evolução, e foi criado e conservado por culturas diversas em diversas épocas e lugares com diversas características próprias. O que está sintetizado aqui corresponde aproximadamente  à forma final em nossa cultura branca e cristã. 

As ideias religiosas são valorizadas em todas as culturas onde elas existem como a posse mais preciosa da cultura, como o que de mais valioso ela tem a oferecer aos seus membros – muito mais estimadas que toda a ciência que ajudou a prover a humanidade com alimentos ou prevenir doenças, etc. Isso porque ela é o ópio para compensar o que a ciência não compensou: o medo da morte e os eternos sofrimentos inerentes à vida humana. 

A maioria dos humanos não suportaria a vida se não atribuir a essas ideias religiosas o valor a elas reivindicado. De modo que essa característica humana produz a necessidade de esclarecimentos sobre: o que são essas ideias à luz da psicologia? De onde recebem sua alta consideração? E, qual é o seu real valor? 

Quando o homem primitivo percebeu que jamais poderia prescindir de proteção contra poderes desconhecidos, emprestou-lhes traços da figura paterna, criou os deuses, dos quais tem medo e procura agradar, e aos quais, no entanto, confia a sua proteção. Tudo resultando da falibilidade humana, da necessidade de se defender da prepotência opressora da natureza, do desejo de compensar as crueldades da vida humana. O medo do homem primitivo não o deixou com qualquer escolha exceto a de projetar o seu ser no desconhecido e considerar todos os processos que observa na vida real como expressões de seres que, no fundo, são idênticos a ele. Era o seu único método de compensação em conformidade com a sua compreensão. 

O homem, mesmo quando personifica as forças da natureza, segue um modelo infantil. O desamparo infantil empresta seus traços característicos à reação contra o desamparo que o adulto é forçado a reconhecer, esta reação é precisamente o alimento da religião. Deus é o pai elevado, o anseio pela proteção paterna é a raiz da necessidade religiosa e do ardil do domínio religioso - a dominação psíquica como preparação para a dominação física. A instituição religiosa é aquela que aprendeu a usar a fraqueza humana para extrair desta o seu poder e dinheiro. 

Visto que as religiões informam sobre aquilo que mais nos importa e mais nos interessa na vida, elas gozam de alta consideração entre os sofredores, sem qualquer questionamento de suas premissas. Quanto mais sofredor, mais valoroso se torna o indivíduo para a religião cristã (seu público-alvo) e esta para eles. O combustível da religião cristã é o medo, a superstição, e a desgraça humana (sentido amplo: ex. pobreza). 

Devemos considerar que nossos antepassados da antiguidade eram muito mais ignorantes do que nós; eles acreditavam em coisas que hoje são impossíveis de aceitar. As provas que nos deixaram estão registradas em escritos que trazem sinais de serem indignos de confiança: são contraditórios, retocados, falsificados e carecem de comprovação. A desculpa para encobrir as falhas de que é obra de inspiração divina não apresenta nenhuma proposição comprovada. A aceitação de tais coisas pelos devotos, ao contrário senso das regras utilizadas para a aceitação de qualquer outra coisa na vida, é por si só um problema psicológico bastante notável. A indemonstrabilidade das doutrinas religiosas foi percebida em todas as épocas, e certamente também pelos antepassados primitivos que legaram tal herança.



Para protegerem-se dos questionamentos da razão, elevaram a crença religiosa ao absurdo para com isso fazer crer que está acima da razão. Que sua verdade deve ser percebida sem a necessidade de compreendê-la. Um fato notável é que quanto mais absurda a tese mais não se prova o seu sim e o seu não, e tudo fica com mais facilidade no campo da ignorância da fé-cega, pautada no medo e nas superstições que interessam ao egoísmo dos devotos. 

Muitos obedecem aos preceitos religiosos porque se deixam intimidar pelas ameaças da religião, temendo-a na medida em que são obrigados a considerá-la como parte da realidade que os restringe. Na antiguidade predominava o medo dos inexplicáveis fenômenos da natureza, hoje o ardil do domínio religioso migrou para o egoísmo do interesse no passaporte para a entrada em um mundo vindouro compensatório dos sofrimentos terrenos. 

Muitos acreditam que a vida tornar-se-ia perigosa se as massas não temessem o Deus criado para este fim. O desprezo à submissão a obediência aos seus preceitos coercitivos morais causaria o retorno à barbárie dos impulsos humanos sem freios. Há outros que acreditam não haver outro meio para dominar os impulsos primitivos senão pela inteligência, e quanto mais religioso mais se aceita a condição de dominado pelas proibições de pensar, fato este que vai de encontro ao ideal psicológico do primado da inteligência.

O homem é um ser de natureza débil, facilmente dominado pelos seus débeis desejos, é muito pouco acessível a motivos racionais contra as suas paixões, medos e superstições compensatórias. Essa é a sua natureza mais íntima. A maioria não pode prescindir do consolo da ilusão religiosa, sem ela não lhes seria possível suportar o peso dos infortúnios da vida, a sua cruel realidade. Pouquíssimos reconhecem todo o seu desamparo, sua insignificância no mecanismo do mundo, que não são o centro da criação e o objeto do cuidado terno de uma providência bondosa incognoscível. Quando mais vulnerável a essa suscetibilidade psicológica, mais propenso às influências da religião e à aceitação do sofrimento da pobreza.

Nenhum homem racional se comporta tão levianamente em outros assuntos, nem se contenta com fundamentações tão miseráveis para seus juízos, para a sua tomada de partido, quanto o faz quando o assunto é religião. Há pessoas que insistem em declarar que quanto mais alguém se reconhecer insignificante diante da Fé mais profundamente religiosa ela é! Em suma, de forma mais clara e direta, quanto menos crítico na busca da verdade melhor ! Seria realmente muito bonito se houvesse um Deus, criador do Mundo e de providência bondosa, se houvesse uma ordem moral universal e uma vida no além, mas é muito estranho que tudo isso esteja apenas no campo da ilusão e não em como a vida realmente é há tantos milhares de anos e pouquíssimos desconfie disso. É ainda mais esquisito pensar que nossos antepassados, pobres, ignorantes e sem liberdade, tivessem encontrado a solução de todos esses difíceis enigmas do mundo.

É aqui que entra também a atividade dos 'espíritas', que estão persuadidos da continuidade da alma individual e que pretendem fazer crer que a proposição dessa doutrina religiosa é isenta de dúvidas. Se a verdade das doutrinas religiosas depende de uma vivência interior que a ateste, o que fazer com as muitas pessoas que não têm semelhante vivência rara?  Pode-se exigir de todos os homens que empreguem o dom da razão que possuem, mas não se pode erigir uma obrigação que seja válida para todos sobre um motivo que existe apenas para bem pouco. Este fato está presente em todas as religiões. A "revelação" nunca ocorreu para muitos ! 

Ao devoto de qualquer religião exige-se que ele deva renunciar às certezas que costuma exigir em todas as suas atividades habituais, precisamente ao tratar de seus interesses mais importantes. E a maioria aceita essa obrigação porque equivale a realização dos desejos mais antigos, mais fortes e mais prementes da espécie humana, e cujo segredo de sua força está na força desses desejos. 


A RELIGIÃO CRISTÃ É MOTIVADORA DE DISCÓRDIA E POBREZA

É justamente a religião cristã que faz com que os pobres se conformem com suas vidas miseráveis. Estes com base na natureza humana vil, sublimam a sua inveja, ódio e vingança contra os ricos transferindo-a para a providência divina, ainda que seja em uma próxima vida. Todos disfarçados de anjos moralistas.

A maioria dos devotos supersticiosos prefere compensar os sofrimentos da pobreza com as crenças religiosas a trabalharem para a dificílima possibilidade de ficarem ricos. Sempre foram poucos os capazes de se resignarem ao destino e capazes de suportar os seus danos. Se for retirado da maioria o ópio da religião e ensinado que não existe um Deus onipotente e absolutamente justo, nenhum ordenamento divino do mundo e nenhuma vida futura, eles se sentirão livres de toda obrigação de obedecer aos preceitos coercitivos culturais. Todos viverão sem as peias psicológicas e sem medos aos seus impulsos associais e egoístas; procurarão exercer seu poder, e recomeçará o caos banido através de um trabalho de persuasão milenar. 

A verdade da religião não interessa a minoria da população no poder. Isso representaria a falência do Vaticano.  Um número incontável de pessoas encontra seu único consolo nas doutrinas religiosas;  somente com seu auxílio podem suportar a vida. A ciência e o alimento intelectual ainda não bastaram para compensar o homem do medo da sua falibilidade. 

Os homens ricos (sentindo amplo) do passado e do presente são aqueles que não permaneceram/permanecem criança para sempre; eles aceitaram enfrentar a vida hostil - pode-se chamar isso de "educação para a realidade". Sempre foi um grande passo para a prosperidade quando alguém deixou de esperar 'dos céus' e aceitou que dependia exclusivamente de suas próprias forças e de usá-las corretamente. Para que importa a ilusão de um Deus incognoscível e de um paraíso cujos benefícios nunca foram confirmados? Os que vivem na condição de pequeno lavrador honesto, focado só nessa terra, conseguem cuidar melhor de Si. Assim são os ricos. Por não colocarem suas expectativas no além e concentrar todas as suas forças nas regras da vida terrena acabam por conseguir tornar as suas vidas e a de muitas outras mais suportável com a riqueza que produzem.

Em épocas passadas, declarações assim faziam com que alguém merecesse uma abreviação certa de sua existência terrena e um bom apressamento da ocasião de fazer suas próprias experiências acerca da vida no além, a inquisição é prova notória disso. 

É no mínimo duvidoso que na época do domínio absoluto das doutrinas religiosas os homens tenham sido em geral mais felizes do que hoje; mais morais certamente não eram. Os sacerdotes que tinham que zelar pela obediência à religião eram transigentes com eles. A "bondade" de Deus impedia a Sua própria justiça: pecava-se, e então se fazia sacrifício ou se cumpria penitência, e então se estava livre para pecar outra vez. Em outras palavras, para se usar todas as graças de Deus, era preciso pecar. É notório que a religião cristã para conseguir e conservar a submissão das massas aos seus interesses de poder fizeram grandes concessões à natureza impulsional do homem. Em todas as épocas, a imoralidade encontrou tanto apoio na religião quanto a moralidade. Tanto a religião judaica quanto a cristã já anunciou como Lei, e matou por ela, aquilo que gerações seguintes com o auxílio da ciência reconheceu como erro crasso. O Jesus Cristo "paz e amor" surgiu quando o Vaticano perdeu a possibilidade de associar-se ao poder e mandar matar em nome de Deus. Aí ficou-se nisso: Deus é forte e bom para quem o teme, mas o homem é fraco e pecador. Quem não concordar não será morto, mas irá para o inferno eternamente após a morte !

Fonte de inspiração do autor do blog: Livro: "O Futuro de uma Ilusão" - do autor: Sigmund Freud.